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Nascido no dia 24 de julho de 1918, o meio-carioca-meio-mineiro (nasceu no Rio de Janeiro, mas viveu desde a infância em Minas Gerais) Antônio Cândido de Melo e Souza iniciou sua carreira acadêmica em 1937, quando passou a fazer os cursos de Direito e Ciências Sociais na Universidade de São Paulo (USP). O primeiro, abandonou. O segundo, terminou em 1941. Começou ali uma das carreiras mais brilhantes da USP e nascia um dos intelectuais mais respeitados do século XX.

Em 1945, Antônio Cândido já era livre-docente de literatura brasileira. Em 1974, tornou-se professor titular de Teoria Literária e Literatura Comparada na USP, cargo no qual se aposentou em 1978. Fora da academia, Antônio Cândido também fez história. Foi ele, por exemplo, quem organizou, em 1956, o Suplemento Literário, do jornal O Estado de S. Paulo. Entre suas obras de crítica literária, Formação da Literatura Brasileira, de 1959, é considerada a mais importante. Os Parceiros do Rio Bonito, 1964, um estudo sobre o caipira paulista e sua transformação, é considerado um clássico em ensaio sociológico. Atualmente, Antônio Cândido é presidente de honra da Fundação Perseu Abramo.

"Estou aposentado há muito tempo e, por isso, há muito afastado dos problemas atuais que atingem a Universidade. Assim, quando fui convidado a participar deste debate, disse que só poderia falar de experis passaênciadas. Disseram que interessava do mesmo jeito as coisas de quando eu era como vocês, quando tinha o privilégio de ser como vocês. Imaginando que estamos nos matriculando na USP por volta de 1938."

 

O que era a universidade? Por que surgiu? Como surgiu? O que aconteceu com ela?

Não sou um estudioso da Universidade, um "uspólogo", como o foi Florestan Fernandes, como é Marilena Chauí, Irene Cardoso, Franklin Leopoldo e Silva, Luís Carlos Menezes e outros. Para aquela geração, a fundação da USP, nucleada pela Faculdade de Filosofia, foi uma verdadeira revolução cultural. Sou sempre otimista sobre a Universidade. São Paulo era provincial, tinha dois museus e o Butantã; a Pinacoteca, que ninguém visitava; e o Museu do Ipiranga, para onde os professores levavam seus alunos. Era uma cidade de vida intelectual modesta. Havia a importante Faculdade de Direito, a de Medicina e a Politécnica..., a Semana de Arte Moderna.
Mas a vida para quem queria um pouco de cultura era praticamente nula. A partir da USP, houve uma revalorização da cultura e surgiram outras universidades em todo o país. A USP também mudou o conceito de pesquisa científica e investigação intelectual. Ainda hoje representa mais de 50% da produção científica brasileira. (...) O bom professor era aquele que improvisava.
Mesmo os que se preparavam para aulas fingiam que improvisavam. Alguns professores de Direito citavam artigos inteiros sem consultar livros. Isto dá uma idéia da transformação dos hábitos intelectuais. É um novo conceito do saber. Antes da USP só havia a Faculdade de Direito nos estudos sociais, nas humanidades. Ela foi um grande "quebra-galho" da cultura brasileira. Quem queria ser escritor, poeta, jornalista, professor, diplomata, administrador, delegado, tudo, fazia Faculdade de Direito. Por isso, a Faculdade de Direito de São Paulo e a do Recife desempenharam papel histórico inigualável.

Permitiram que vocações se manifestassem. É muito sintomático que as placas comemorativas na Faculdade de Direito sejam para Álvares de Azevedo e Castro Alves, pessoas que não queriam saber de Direito, mas de poesia. A Faculdade de Filosofia abriu um leque enorme. A pessoa podia fazer estudos literários, de História, Geografia, Economia, Filosofia. Não havia formação superior nessas áreas. Esses cursos são recentes no país, datam da USP. A importância cultural da Faculdade de Filosofia pela multiplicação das possibilidades de especialização é extraordinária. A USP foi pensada no seio da elite política e cultural de São Paulo. O Partido Democrático foi para o poder, em 1933, quando foi nomeado um interventor paulista para o Estado (quando São Paulo fez as petúlio Vargas), Armando Salles de Oliveira, ligado ao grupo Estado de São Paulo.
"A primeira turma de Ciências Sociais só formou uma moça.
Júlio de Mesquita Filho disse que a cidade de São Paulo não estava preparada para a Faculdade de Filosofia.
O professor Fernandes pediu, então, que se contemplasse os professores primários de bom rendimento com vagas ociosas da faculdade.

Foi o esboço do sistema de bolsas. Esses professores primários foram comissionados a serem alunos da faculdade."
Quem imaginou a USP foi Júlio Mesquita Filho. A Cidade Universitária não deveria chamar-se Armando Salles de Oliveira, mas Júlio Mesquita Filho. Foi ele quem pediu ao cunhado que fizesse a USP. É uma escola de elite? De privilegiados?
A USP pertence aos "feitos da burguesia". A burguesia tem poder, dinheiro, decisão política e pode fazer. Às vezes faz coisas úteis para a coletividade. Quase nunca. Mas quando decide, por vaidade ou interesses, e toma iniciativas culturais, muitas se tornam favoráveis ao coletivo. Podemos citar A Semana de Arte Moderna, financiada pelo Paulo Prado, um ricaço; a Escola de Sociologia e Política; a Biblioteca Mário de Andrade; a Fazes com Gaculdade de Filosofia; o Teatro Brasileiro de Comédia (TBC), depois Teatro Brasileiro; Companhia Cinematográfica Vera Cruz; Museu de Arte Contemporânea (MAC)... e mesmo as Bienais. São todos "feitos da burguesia" que vã o escapando dela. Por isso, os criadores da USP diziam: "Esta não é a Universidade dos nossos sonhos". Um senhor disse para mim uma vez: "O Brasil são 20 vagões vazios puxados por uma locomotiva, que é São Paulo. A USP é para ver se alguns rapazes de outros Estados aprendem e ajudam Sã o Paulo a puxar os vagões".

Havia até esta formulação grosseira. O fato é que foi feita por uma parcela esclarecida da burguesia e tornou-se um "feito da burguesia". O primeiro grande feito democrático da USP foi colocar no mesmo nível as grandes escolas e as pequenas escolas, tendo como eixo essa escola nova, a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras. Esta não é a Faculdade de Filosofia atual. Antes pegava tudo: Física, Química, Matemática, Estudos de Literatura. (...) O partido oposto ao democrático ficou indignado. É um luxo da burguesia. Para que professor francês se temos profissionais bons. Vai estrangeirizar São Paulo. Um jornal, A Gazeta, que não existe mais, era pelo fechamento da Faculdade de Filosofia. Um interventor, Dr. Ademar Ferreira de Barros, tomou providências para o fechamento da faculdade. Ele nomeou um diretor com a finalidade expressa de fechar a faculdade, o professor Alfredo Hélio Jr. Mas este gostou da faculdade. Ele era historiador e sentiu a importância de cursos superiores na área e passou a defendê-la.

Quem freqüentava a Faculdade de Filosofia?

Tomando a USP pelo centro inovador, havia três grupos. O primeiro era o dos movidos pela curiosidade e pela novidade. O segundo era movido pelo desejo de transferência de vocação. O terceiro, movido pelo desejo de promoção social. (...)
No que diz respeito ao terceiro grupo, são importantes alguns aspectos democráticos da Universidade.
A faculdade, depois da fundação, quase não tinha alunos. A primeira turma de Ciências Sociais só formou uma moça. Júlio de Mesquita Filho chamou, então, o professor Fernandes de Azevedo (autor do estatuto base da USP) e disse que São Paulo não estava preparada para a Faculdade de Filosofia. O professor Fernandes pediu, então, que Mesquita conseguisse um decreto junto ao cunhado. A idéia dele era contemplar os professores primários de bom rendimento com vagas na faculdade. Isso é muito importante. Foi o esboço do sistema de bolsas.
Nascia ali a idéia de receber para estudar. Esses professores primários foram comissionados a serem alunos da faculdade. Para eles, foi uma tremenda promoção, porque puderam passar para o magistério secundário ou o normal. Naquele tempo, ambos eram muito bem remunerados.
Um professor de ginásio podia manter a família com seu salário, tanto é que muitas pessoas eram convidadas a serem assistentes da faculdade, mas preferiam ir ao secundário, onde se ganhava mais. Era uma promoção econômica e social. Mas foi um crescimento do próprio nível universitário, porque do seio desses modestos professores primários comissionados saíram quadros importantíssimos de pesquisadores, cientistas e intelectuais da Universidade de São Paulo. Foi uma medida altamente democrática de grande efeito para o futuro da USP.

Outro exemplo de democratização foi o advento das mulheres. Mulheres, negros, homossexuais ainda são minorias excluídas. Quase não existiam mulheres nas escolas superiores. Eu cursei simultaneamente a Faculdade de Filosofia e a Faculdade de Direito. Na turma de Direito (até então, a maior turma da faculdade, 300 estudantes), havia seis moças. Eram 294 homens e seis moças. Na Medicina, havia uma ou duas por turma. Engenharia nem sei se havia. Na Faculdade de Filosofia, as mulheres entraram em massa. Elas sempre foram numericamente superiores aos homens e tiveram um campo de afirmação pessoal, de progresso intelectual e não sofreram nenhuma discriminação para entrar no corpo docente como assistentes.

Agora, catedráticas era outra conversa. Houve algumas graves injustiças contra mulheres de grande categoria. Elas foram preteridas por homens bastante incompetentes, porque eram mulheres. Para mostrar como era tenso o ambiente, em um dos concursos, havia dois homens e uma moça concorrendo. A moça era mil furos acima dos homens, não havia termos de comparação.
A banca foi montada para aprovar os homens. Eu fiquei inteiramente ao lado dessa colega. O escândalo entre vários colegas da faculdade foi grande. Um deles, um professor que eu até venerava, disse: "O que deu no Antônio Cândido para ele ficar do lado das mulheres?". Não foi fácil, mas as mulheres entraram desde o começo.
Levando isso em conta, como democratização, como incorporação de um meio excluído da sociedade, foi uma coisa extraordinária. As mulheres deram sempre excelente conta de si. Outro exemplo que dou, que considero grande exemplo de democratização, foi o que eu chamo de radicalização que a Faculdade de Filosofia operou no ambiente universitário.

"Quem queria ser escritor, poeta, jornalista, professor, diplomata, administrador, delegado, tudo, fazia Faculdade de Direito. É muito sintomático que as placas comemorativas na Faculdade de Direito sejam para Álvares de Azevedo e Castro Alves, pessoas que não queriam saber de Direito, mas de poesia ."

Ela era politizada? Havia partidos políticos lá dentro? Não. A faculdade foi fundada em 1934 e os alunos só começaram a se politizar em 1944. (...)
Mas me refiro não à politização de partidos, falo da introdução da consciência crítica. Neste momento, Sociologia, História, Geografia Humana, Economia e Filosofia são matérias que levam a criticar os fundamentos da sociedade. Isto hoje é banalíssimo, mas na época o lugar onde as pessoas iam estudar era a Faculdade de Direito. E ela é feita, normalmente, para o contrário, para manter a ordem. É o Direito Civil, Direito Penal, Direito Comercial. É a intangibilidade das instituições, o legalismo.

A tendência é não discutir. Isto não significa que a Faculdade de Direito fosse conformista, ao contrário. As grandes agitações de política estudantil eram na Faculdade de Direito, mas o que os professores ensinavam era extremamente convencional. Eu comecei a minha vida política na Faculdade de Direito. Foi lá que comecei a militar contra a ditadura do Estado Novo. Mas as aulas eram muito conformistas. Em compensação, na Filosofia tínhamos Análise da família, da religião, do Estado, víamos alternativas e senso de relativo.
A Faculdade de Filosofia provocou, sem que percebêssemos, uma grande radicalização. Os estudantes saíam com capacidade de fazer uma análise radical da sociedade. (...)
Quem começou a estudar as classes despossuídas?

Quem começou a estudar o pobre, o parceiro rural, o caiçara, o migrante pobre, o índio destribalizado, o sitiante?
Foram os alunos da Faculdade de Filosofia e da Escola de Sociologia e Política. Simbolicamente, a primeira pesquisa sociológica sobre o presente realizada em São Paulo foi feita na Escola de Sociologia e Política, sob a orientação de um professor norte-americano, chamado Samuel Lory, sobre os lixeiros de São Paulo. Passamos do grande domínio e da aristocracia rural de Oliveira Viana, do senhor de engenho de Gilberto Freyre para o lixeiro. Isso não significava que os professores da Faculdade de Filosofia fossem de esquerda, pelo contrário, eram de direita mesmo. (...)
Mas havia um respeito pela opinião dos colegas. Havia a idéia de que a faculdade não foi feita para agradar ao poder. Ela é uma entidade crítica. Isto devia estar presente lá. (...)
Por isso, eu prezo muito pelo aspecto democrático da Universidade. Uma das coisas fundamentais da universidade é o respeito pela diferença de opinião. É muito importante que uma Universidade dê a seus estudantes uma consciência crítica que lhes permita agir politicamente como cidadãos, até fora dela. É preciso que ele saia da Universidade com a consciência crítica suficiente para que aja como cidadão. Se a Universidade conseguir formar, além de especialistas, cidadãos, ela teve êxito. Eu posso dizer que, para meu grupo e minha geração, a USP nos deu isto. Por isso, somos muito gratos a ela.

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