Quem imaginou a USP foi Júlio Mesquita Filho. A Cidade Universitária não deveria chamar-se
Armando Salles de Oliveira, mas Júlio Mesquita Filho. Foi ele quem pediu ao cunhado que fizesse a USP.
É uma escola de elite? De privilegiados? A USP pertence aos "feitos da burguesia". A burguesia tem poder,
dinheiro, decisão política e pode fazer. Às vezes faz coisas úteis para a coletividade.
Quase nunca. Mas quando decide, por vaidade ou interesses, e toma iniciativas culturais, muitas se tornam
favoráveis ao coletivo. Podemos citar A Semana de Arte Moderna, financiada pelo Paulo Prado, um ricaço;
a Escola de Sociologia e Política; a Biblioteca Mário de Andrade; a Fazes com Gaculdade de Filosofia;
o Teatro Brasileiro de Comédia (TBC), depois Teatro Brasileiro; Companhia Cinematográfica Vera Cruz;
Museu de Arte Contemporânea (MAC)... e mesmo as Bienais. São todos "feitos da burguesia" que vã
o escapando dela. Por isso, os criadores da USP diziam: "Esta não é a Universidade dos nossos sonhos".
Um senhor disse para mim uma vez: "O Brasil são 20 vagões vazios puxados por uma locomotiva, que
é São Paulo. A USP é para ver se alguns rapazes de outros Estados aprendem e ajudam Sã
o Paulo a puxar os vagões". Havia até esta formulação grosseira. O fato é que foi feita por uma parcela esclarecida
da burguesia e tornou-se um "feito da burguesia". O primeiro grande feito democrático da USP foi colocar no
mesmo nível as grandes escolas e as pequenas escolas, tendo como eixo essa escola nova, a Faculdade de Filosofia,
Ciências e Letras. Esta não é a Faculdade de Filosofia atual. Antes pegava tudo: Física,
Química, Matemática, Estudos de Literatura. (...) O partido oposto ao democrático ficou indignado.
É um luxo da burguesia. Para que professor francês se temos profissionais bons. Vai estrangeirizar
São Paulo. Um jornal, A Gazeta, que não existe mais, era pelo fechamento da Faculdade de Filosofia.
Um interventor, Dr. Ademar Ferreira de Barros, tomou providências para o fechamento da faculdade.
Ele nomeou um diretor com a finalidade expressa de fechar a faculdade, o professor Alfredo Hélio Jr.
Mas este gostou da faculdade. Ele era historiador e sentiu a importância de cursos superiores na área
e passou a defendê-la.
Quem freqüentava a Faculdade de Filosofia?
Tomando a USP pelo centro inovador, havia três grupos. O primeiro era o dos movidos pela curiosidade e
pela novidade. O segundo era movido pelo desejo de transferência de vocação. O terceiro, movido pelo
desejo de promoção social. (...)
No que diz respeito ao terceiro grupo, são importantes alguns
aspectos democráticos da Universidade.
A faculdade, depois da fundação, quase não tinha
alunos. A primeira turma de Ciências Sociais só formou uma moça. Júlio de Mesquita Filho
chamou, então, o professor Fernandes de Azevedo (autor do estatuto base da USP) e disse que São Paulo
não estava preparada para a Faculdade de Filosofia. O professor Fernandes pediu, então, que Mesquita
conseguisse um decreto junto ao cunhado. A idéia dele era contemplar os professores primários de bom
rendimento com vagas na faculdade. Isso é muito importante. Foi o esboço do sistema de bolsas.
Nascia ali a idéia de receber para estudar. Esses professores primários foram comissionados a serem
alunos da faculdade. Para eles, foi uma tremenda promoção, porque puderam passar para o magistério
secundário ou o normal. Naquele tempo, ambos eram muito bem remunerados.
Um professor de ginásio podia
manter a família com seu salário, tanto é que muitas pessoas eram convidadas a serem assistentes
da faculdade, mas preferiam ir ao secundário, onde se ganhava mais. Era uma promoção
econômica e social. Mas foi um crescimento do próprio nível universitário, porque
do seio desses modestos professores primários comissionados saíram quadros importantíssimos
de pesquisadores, cientistas e intelectuais da Universidade de São Paulo. Foi uma medida altamente
democrática de grande efeito para o futuro da USP.
Outro exemplo de democratização foi o advento das mulheres. Mulheres, negros, homossexuais ainda
são minorias excluídas. Quase não existiam mulheres nas escolas superiores. Eu cursei
simultaneamente a Faculdade de Filosofia e a Faculdade de Direito. Na turma de Direito (até então,
a maior turma da faculdade, 300 estudantes), havia seis moças. Eram 294 homens e seis moças. Na Medicina,
havia uma ou duas por turma. Engenharia nem sei se havia. Na Faculdade de Filosofia, as mulheres entraram em massa.
Elas sempre foram numericamente superiores aos homens e tiveram um campo de afirmação pessoal,
de progresso intelectual e não sofreram nenhuma discriminação para entrar no corpo docente como
assistentes.
Agora, catedráticas era outra conversa. Houve algumas graves injustiças contra mulheres de grande
categoria. Elas foram preteridas por homens bastante incompetentes, porque eram mulheres. Para mostrar como era
tenso o ambiente, em um dos concursos, havia dois homens e uma moça concorrendo. A moça era mil furos
acima dos homens, não havia termos de comparação.
A banca foi montada para aprovar os homens.
Eu fiquei inteiramente ao lado dessa colega. O escândalo entre vários colegas da faculdade foi grande.
Um deles, um professor que eu até venerava, disse: "O que deu no Antônio Cândido para ele ficar
do lado das mulheres?". Não foi fácil, mas as mulheres entraram desde o começo.
Levando isso
em conta, como democratização, como incorporação de um meio excluído da sociedade,
foi uma coisa extraordinária. As mulheres deram sempre excelente conta de si. Outro exemplo que dou, que
considero grande exemplo de democratização, foi o que eu chamo de radicalização que a
Faculdade de Filosofia operou no ambiente universitário.
"Quem queria ser escritor, poeta, jornalista, professor, diplomata, administrador, delegado, tudo,
fazia Faculdade de Direito. É muito sintomático que as placas comemorativas na Faculdade de Direito
sejam para Álvares de Azevedo e Castro Alves, pessoas que não queriam saber de Direito, mas de poesia
."
Ela era politizada? Havia partidos políticos lá dentro? Não. A faculdade foi fundada em
1934 e os alunos só começaram a se politizar em 1944. (...)
Mas me refiro não à
politização de partidos, falo da introdução da consciência crítica.
Neste momento, Sociologia, História, Geografia Humana, Economia e Filosofia são matérias que
levam a criticar os fundamentos da sociedade. Isto hoje é banalíssimo, mas na época o lugar onde
as pessoas iam estudar era a Faculdade de Direito. E ela é feita, normalmente, para o contrário,
para manter a ordem. É o Direito Civil, Direito Penal, Direito Comercial. É a intangibilidade das
instituições, o legalismo.
A tendência é não discutir. Isto não significa
que a Faculdade de Direito fosse conformista, ao contrário. As grandes agitações de política
estudantil eram na Faculdade de Direito, mas o que os professores ensinavam era extremamente convencional.
Eu comecei a minha vida política na Faculdade de Direito. Foi lá que comecei a militar contra a
ditadura do Estado Novo. Mas as aulas eram muito conformistas. Em compensação, na Filosofia
tínhamos Análise da família, da religião, do Estado, víamos alternativas e
senso de relativo.
A Faculdade de Filosofia provocou, sem que percebêssemos, uma grande
radicalização. Os estudantes saíam com capacidade de fazer uma análise radical da
sociedade. (...)
Quem começou a estudar as classes despossuídas?
Quem começou a estudar o pobre, o parceiro rural, o caiçara, o migrante pobre, o índio
destribalizado, o sitiante?
Foram os alunos da Faculdade de Filosofia e da Escola de Sociologia e Política.
Simbolicamente, a primeira pesquisa sociológica sobre o presente realizada em São Paulo foi feita
na Escola de Sociologia e Política, sob a orientação de um professor norte-americano, chamado
Samuel Lory, sobre os lixeiros de São Paulo. Passamos do grande domínio e da aristocracia rural
de Oliveira Viana, do senhor de engenho de Gilberto Freyre para o lixeiro. Isso não significava que os
professores da Faculdade de Filosofia fossem de esquerda, pelo contrário, eram de direita mesmo. (...)
Mas havia um respeito pela opinião dos colegas. Havia a idéia de que a faculdade não foi
feita para agradar ao poder. Ela é uma entidade crítica. Isto devia estar presente lá.
(...)
Por isso, eu prezo muito pelo aspecto democrático da Universidade.
Uma das coisas fundamentais da universidade é o respeito pela diferença de opinião.
É muito importante que uma Universidade dê a seus estudantes uma consciência crítica
que lhes permita agir politicamente como cidadãos, até fora dela. É preciso que ele saia da
Universidade com a consciência crítica suficiente para que aja como cidadão. Se a Universidade
conseguir formar, além de especialistas, cidadãos, ela teve êxito. Eu posso dizer que, para
meu grupo e minha geração, a USP nos deu isto. Por isso, somos muito gratos a ela. |